Capítulo 8: A carta
- Os pais dela estão mortos - disse Felipe com a voz tensa, deixando a linha em um completo silêncio.
- Como assim? - respondi perplexo.
- Vou aí falar contigo e explicar. Vamos em algum lugar conversar.
- Ok. Tem um bar à cinco minutos da minha casa. Mando a localização por mensagem.
Eu saí de casa o mais rápido que pude para falar com Felipe, mesmo sabendo que ele demoraria pelo menos 20 minutos para chegar. O que ele me falou por telefone fazia tudo ficar diferente. Alguns detalhes perdiam sentido, enquanto outros ganhavam um sentido ainda maior. Bárbara falou comigo por alguns minutos e não se importou em acabar com todas as minhas dúvidas, porém, não fez questão de falar sobre algo tão importante para entendê-la.
Compreendo como deve ser doloroso falar sobre o assunto, mas… É estranho. Ela nunca deixou transparecer isso. Me contou histórias com total sentido sem precisar falar sobre algo que dava todo sentido à elas.
Minha mente viajou para longe. Comecei a lembrar de cada simples atitude de Bárbara. A semana em que veio toda de preto, com uma meia calça que deixava ver pouco por baixo daquela cor escura, a forma como me olhou de baixo para cima naquele dia sem me dizer nada, as vezes em que sumia no meio da explicação do professor e depois voltava para sala com um copo de café quente e um chocolate.
Durante 20 minutos pensei que talvez Bárbara precisasse de um amigo, embora não soubesse disso. Dizia com firmeza que ninguém precisava dela ou da sua opinião, mas nunca deixou que ninguém soubesse como ela era ou o que realmente pensava. Bárbara me enganou quando olhou para mim rindo, tentando demonstrar ser a pessoa mais feliz do mundo. Ela não é.
Uma garota sozinha, com atitudes que demonstram sua total solidão, mas que tenta esconder suas verdades por trás de sorrisos. Essa é Bárbara. E essa história toda me deixa convencido de que ela nunca teve emoções.
- Os pais dela morreram assassinados e até hoje ninguém sabe por quem. Provavelmente veio morar aqui para fugir disso. O bebê realmente é irmão dela, mas ela é a única filha mulher, ou seja, não tinha nenhuma irmã gêmea – Felipe contou-me assim que chegou, sem se quer me desejar uma boa noite, ou me pedir calma para ouvir o que ele iria falar.
- Como assim, Felipe? Ela não me falou nada disso sobre os pais dela – eu respondi ainda sem acreditar. - Como você descobriu isso?
- Lembra que tu me pediu para procurar informações sobre ela no sistema da faculdade. Eu encontrei o motivo da transferência dela, e parece que ela simplesmente parou de ir nas aulas de um dia para o outro, apareceu umas duas semanas depois, manteve irregularidade nas presenças e acabou pedindo a transferência antes que acabasse o semestre – explicou Felipe.
- Mas ela me disse que tinha sido por causa de uma sucessão de problemas. Inscrição no vestibular, matrícula na faculdade, financiamento do gover...
- Não cara – interrompeu Felipe. - Ela nunca teve nenhum desses problemas. Bárbara era uma ótima aluna no Ensino Médio, consegui o histórico dela, tanto que inclusive ganhou uma bolsa integral para estudar Medicina na faculdade anterior. Não precisou nem fazer prova, foi convidada.
- Felipe, eu preciso falar com ela de novo. Preciso saber o motivo de ela ter mentido para mim até nisso. Quero entender se o isolamento dela tem a ver com a morte dos pais ou se ela sempre foi assim.
- Cara, não tenta. Ela só vai inventar novas mentiras e histórias para te enganar de novo e acabar te decepcionando.
- Não vai fazer isso, porquê agora eu sei quem é ela.
- Não sabe – falou Felipe quase que impaciente.
- Eu preciso fazer isso, Felipe. Só me diz se descobriu mais alguma coisa sobre ela.
- Não.
Felipe realmente parecia não saber mais nada, mas eu precisava descobrir se ela realmente tinha um namorado, o motivo de ela ter mentido para mim e todo o resto que eu não tinha certeza se era verdade. Eu teria que esperar uma semana. Uma dolorosa semana, até poder ver e falar com Bárbara novamente.
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- Felipe, ela ainda não chegou na aula – eu disse, surpreso, enquanto copiava o conteúdo no caderno.
- Eu não posso dizer que acho isso ruim.
- Não quer saber a verdade sobre ela?
- Eu desisti. Não quero mais saber nada da vida dela. Em certas coisas nós nunca devemos nos intrometer, e vida de Bárbara é uma delas.
Já havia passado cerca de duas horas de aula e Bárbara ainda não viera. Será que ela mudou novamente de universidade? Será que outro familiar dela morreu? Será que ela ficou com medo que eu descobrisse a verdade sobre ela? Será que um dia eu veria Bárbara?
Ao fim da aula Felipe me convidou para tomar umas cervejas e nós fomos até o bar na frente da faculdade. Eu bebi o suficiente para ficar tonto e consegui uma carona para voltar para casa. Assim que cheguei, a primeira coisa que fiz foi cair na cama. E eu realmente caí, não me joguei, caí, pois não me aguentava mais em pé. Pelo menos a bebedeira me fez esquecer um pouco da frustração da noite.
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- Filho, acorda, já está quase na hora do almoço – disse minha mãe enquanto me acordava. Como não tinha trabalho fixo e costumava apenas produzir umas “coisinhas” de publicidade, não tinha nenhum chefe me pedindo para chegar mais cedo, ser mais responsável e trabalhar mais, mas sempre tinha dinheiro suficiente para pagar as poucas cadeiras que fazia na faculdade.
- Ok, mãe. Estou levantando – respondi com voz de sono e de ressaca.
Em 15 minutos já estava de pé e pronto para almoçar. Minha mãe terminava de fazer o almoço enquanto olhava o noticiário. Eu tentava me concentrar em não deixar a dor de cabeça tomar conta de mim até que...
- Meu Deus. Que história mais triste – minha mãe gritou da cozinha.
- O que aconteceu, mãe?
- Uma menina da sua idade morreu ontem no final da tarde, e encontraram ela só hoje pela manhã.
- Como assim? - questionei.
- Parece que ela mora sozinha com o irmão dela, um bebê com pouco mais de um aninho e a criança chorou a noite toda. Quando os vizinhos foram na casa para saber o que havia acontecido, a porta estava aberta e encontraram a menina morta. Parece que estava com a mochila pronta para sair para a faculdade, mas não saiu.
- Como é o nome dela, mãe? - perguntei aflito, como se estivesse pressentindo que algo podi...
- Bárbara – ela respondeu, interrompendo meus pensamentos.
De repente, o mundo parecia ter virado de cabeça para baixo. Não passou 10 minutos e Felipe já me ligou. Ele também ficou sabendo do que aconteceu. Eu não sabia o que falar para ele e ele não sabia o que falar para mim. Até me contou que o repórter de um site da cidade conversou com algum vizinho dela e esse vizinho afirmou que ela tinha chegado a pouco tempo para morar ali e que tinha ouvido falar que ela sofria de depressão ou alguma coisa do tipo.
Vi Bárbara pela última vez em uma terça-feira chuvosa. Fiz para ela apenas metade das perguntas que hoje tenho vontade de fazer. Bárbara foi embora sem dizer tchau, e sem esclarecer os motivos de ir. Afinal, ela não tinha para quem se explicar. Aqueles olhos castanhos não farão mais parte da minha vida, nem das minhas aulas. Bárbara não tinha emoções. Não tinha mais pais, nem irmãos, nem muitos amigos. O que Bárbara tinha de mais valioso eram dois colegas curiosos pelos mistérios que ela parecia esconder.
Bárbara estava certa. Ela realmente era uma perdida no meio de tantos outros perdidos. A diferença, é que ela nunca teve alguém para ajudar a se achar.
- Cara, tinha uma carta na casa dela.
- E?
- Estava destinada para “Rafa: com emoções”.
- Sou eu.
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